O “JÁ E AINDA-NÃO” NA E DA VRC NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO
Frei
Luiz Augusto de Mattos
Equipe
Interdisciplinar CRB
Escampelo88@yahoo.com.br
Participar da
24ª Assembléia Geral da CRBN, nos dias 11-15/7/2016 em Brasília- DF, foi uma
experiência de reflexão, meditação, encontros e convivência com
companheiros(as) da vida religiosa de centenas de congregações. E tudo permeado
por alegrias, perplexidade, novidades, pluralidade, convicções, preocupações e
esperanças.
Não podia ser
diferente numa Assembléia que tinha em torno de 500 participantes, vindos do
Norte, do Sul, do Leste e do Oeste do país, além de representações de outros
países e continentes. Ademais, ali ocorreu: a interação entre religiosos das Novas Gerações e religiosos com
até mais de 50 anos de consagração; um “encontro” entre vários modelos ou modo
de consagrar e compreender a VRC.
Surpresa
também foi a fala provocativa, interpeladora e animadora de algumas autoridades
eclesiásticas que vivem em sintonia com a visão de Igreja do papa Francisco. Igreja
de Saída e Sinodal, misericordiosa e identificada com os pobres e vulneráveis.
Também foram iluminadoras as palestras proferidas nos dois primeiros dias a respeito da situação de Crise que atravessa
o país, os desafios e clamores que se colocam para a VRC na atualidade. O ato
“litúrgico” em frente da Catedral foi uma forma de dizer ou manifestar a
inconformidade com muitas coisas que estão acontecendo no país.
Enfim,
experiência “amazônica” que me instiga a refletir e dizer o que pude ver de
Kairós, de recondução “do mesmo”, de avanços e o que ficou no silêncio. Mas
ainda pelo fato de que a Assembléia tinha como lema: “Eis que estou fazendo uma
coisa nova!” (Is 43,19).
A reflexão
apresentará quatro itens, e cada item terá cinco temas tratados. Temas que
foram refletidos durante a AGE, com exceção do último item que elencará temas
que não foram tratados ou pouco lembrados, mas que deveriam ser considerados
visando a uma renovação da VRC.
1.
Realidades de Kairós
Entre as
várias realidades que lembram o “Tempo de Graça” e que foram testemunhadas
durante a AGE, pode-se destacar:
1.1. A presença determinante da mulher
Uma realidade
inegável e determinante nos rumos da Assembleia teve a ver com a presença da
mulher. Inclusive é possível afirmar que o “rosto feminino” da Assembleia foi determinante.
Isso quando se fala, sobretudo, de inserção na periferia, de compromisso nas
áreas de fronteiras, de práticas e luta no mundo dos pobres. Lógico, isso não
nega a presença também de homens nesse compromisso. Mas, na verdade, a mulher
religiosa se destaca, a partir de uma linha de ação ousada, esperançosa,
valente e carregada de fé e fidelidade – a mulher entra no compromisso de
“corpo inteiro”!
Um fato
expressivo na AGE foi o resultado das votações para a diretoria. Os três nomes
mais votados foram de mulheres: uma do Norte, uma do Nordeste e a terceira do
Sudeste. Alguém poderia dizer: “Isso ocorreu porque a maioria era mulher” – mas
isso explica tudo? E mais, a Ir. Maria
Inês Ribeiro obteve 94% dos votos na sua reeleição para a Presidência da CRBN.
Enfim,
recupera-se o viés feminino e recria a “tensão” indisfarçável entre o masculino
e o feminino existente na experiência da vida VRC. Mas fica ainda o desafio de
seguir abrindo espaço para uma “participação plena” da mulher religiosa na
Evangelização, por exemplo: nos ministérios ordenados.
1.2. O Mundo dos pobres “fala alto”, “toca fundo”
Os depoimentos
mais contundentes, por exemplo, a experiência no Haiti; as interpelações mais
fortes das palestras, das falas e dos sermões das celebrações; os testemunhos
mais interpeladores para uma VRC acomodada... foram os que tinham a ver com a
vida e o mundo dos empobrecidos e excluídos.
Tudo numa
ótica de que a VRC se faz Evangelho vivo para a vida dos últimos da história,
quando ela é testemunho de fragilidade e pequenez junto aos mais abandonados e
sem cuidados da sociedade. Empobrecidos que se identificam na vida de muitos
povos indígenas, de milhares de pessoas traficadas, de grupos ou pessoas
discriminadas, de imigrantes na luta pela sobrevivência e de afrodescendentes
buscando serem sujeitos na história.
O indicador dessa experiência de
Seguimento é de que a VRC se faz luz, fermento e sal junto a essa realidade. E,
ainda, ela encontra sentido e profundidade, beleza e alegria, esperança e
profecia, quando se encarna no (sub)mundo dos queridos do Pai. Nesse sentido,
em alguns grupos de trabalho apareceu muito a preocupação com a “opção pelos
pobres”, “inserção” e “mudança de lugar social”.
Impressionante
também na AGE foi a constatação da falta de uma reflexão a respeito de um trabalho
no mundo da elite. Nos trabalhos dos grupos, quando se mencionou, por exemplo,
o trabalho nos colégios religiosos, a reflexão foi de maneira muito “tímida”.
Para dizer a verdade, apenas um grupo mencionou o trabalho junto aos colégios
religiosos.
1.3. O clamor das Novas Gerações
A presença e a
voz, a acolhida e a defesa das NGs se fizeram sentir na AGE. A busca do
protagonismo na missão, a vivência do perfil de vida humanizada, a rejeição de
uma estrutura formativa rígida e infantilizadora, a necessidade de aprofundar
temas como negritude, gênero e homossexualidade, espiritualidade sem esquemas,
a interculturalidade como valor e a vivência de uma vida afetiva e feliz foram
clamores apresentados nos trabalhos de grupos e na exposição dos representantes
das NGs. Ao mesmo tempo existe uma sintonia com imperativos apresentados pelo
papa Francisco, como: profecia, memória, zelo apostólico, cultura do definitivo
etc.
Enfim, a VRC
está chamada a compreender as NGs como “lugar teológico”. Ou seja, Deus falando
por meio das juventudes e o Sagrado se manifestando de muitos modos.
1.4. A questão de Gênero
Outro tema que
emergiu em debates no momento de alguma “Mesa Temática” e nos trabalhos de
grupos foi a questão de Gênero. Como a VRC vivencia, em sua estrutura
comunitária e Institucional, a presença de identidades afetivossexuais de corte
homossexual, constata-se, cada vez mais, a necessidade desafiante de tratar
questões da formação e da vivência
comunitária não apenas no enfoque heterocentrado. E para essa nova realidade como
a VRC está preparada? Não houve espaço
de manifestação a favor ou contra, mas no resultado dos trabalhos em grupos e
em debate numa “Mesa Temática” surgiram questões sérias a serem aprofundada.
Não dá mais para “fazer de conta” que o tema não existe em muitas congregações
de mulheres ou de homens. Urge ter
lucidez, frente a uma Sociedade laical, plural, secularizada e democrática,
para compreender o processo de emancipação dessas minorias que querem “um lugar
ao sol”, sem concessão, também na VRC. O desafio está colocado!
1.5. A defesa da “Casa Comum”
Também foi marcante
a preocupação nas palestras e em numa “Mesa Temática”, o que contribuiu para
repercutir nos trabalhos dos grupos, a questão do cuidar da nossa “Casa Comum”.
A exortação “Laudato Si” do papa
Francisco foi muito lembrada. Nesse sentido, hoje existe uma consciência por
parte da VRC de que não se pode viver descompromissado(a) em relação à vida de
todos os seres vivos da Terra. Não cuidar da Terra é descomprometer com o
futuro da vida. E falar da preocupação com a Casa Comum implica, entre outras
coisas, o resgate da ecologia ambiental, social, espiritual e integral.
A VRC está
desafiada a vivenciar um testemunho profético em relação à destruição da
Criação de Deus. Onde a vida clama por amor e justiça, cabe uma presença de
compaixão e libertação.
2.
O “mesmo de sempre” re-significado
Outra constatação
na AGE diz respeito à recondução e fortalecimento de temas já bem conhecidos na
caminhada da VRC em nossa realidade latino-americana. O que serve não para
desqualificar o fato, e sim pontuar como o núcleo identitário e outros temas
fundamentais para a vida religiosa são per-seguidos.
Entre esses
princípios e/ou temas podem-se elencar:
2.1.
Experiência mística
Nas
exposições, grupos de trabalho e numa “Mesa Temática”, o tema da mística teve
grande destaque, sendo, inclusive, o mais votado para as prioridades. O enfoque
dado destacou uma mística encarnada, de “olhos e ouvidos abertos” e “coração
ardente”, integrada com a profecia e com as novas fronteiras.
A experiência
mística compreendida também como luz e fortaleza diante de uma situação de Crise
em nosso contexto societário. A mística dando alento e sustento à VRC, para que
a mesma siga acreditando na novidade em
meio a tanta des-Graça (exclusão,
violência, desemprego, miséria etc.).
Também chamou
a atenção a falta de uma concepção de mística partindo de uma espiritualidade
política libertadora, a qual pudesse iluminar efortalecer a VRC diante das
lutas pela vida na atual civilização.
2.2. A vida
comunitária fraterna
Na AGE outra
temática revalorizada e resignificada foi a vida comunitária. A mesma
vivenciada desde relações humanizadoras e solidárias. Para essa experiência se
destacou valores como: misericórdia, gratuidade, humildade, diálogo e
compaixão.
Existe um
clamor por experiências comunitárias com mais afetividade, reciprocidade e
horizontalidade. Como também se queixa de comunidades onde religiosos(as) estão
padecendo devido uma vida de solidão, discriminação, estresse e descuido. Aqui
entra o tema dos idosos(as), pelo fato de que em algumas comunidades não se
vive uma velhice digna e justa. Ou seja, urge assumir um compromisso afetivo e
efetivo, respeitador e responsável, pelo setor da VRC que está na terceira
idade.
Também é
fundamental conscientizar e tratar com profundidade o tema do envelhecimento
dos membros de muitas congregações. Congregações que não apresentam boas
perspectivas de renovação.
2.3. A
dimensão missionária
A preocupação
pela missão segue sendo também prioridade. Isso numa perspectiva de leveza na
itinerância, do compromisso e compaixão pelas causas e lutas do povo. Continua
existindo uma preocupação de que a VRC não se estacione na zona de conforto, e
que siga na reivindicação e promoção do direito à vida digna, preferencialmente
dos empobrecidos e vulneráveis. Nesse sentido, a opção pelos pobres também ganhou
destaque como prioridade.
Um exemplo
claro dessa missão junto aos mais necessitados entre as pessoas e os povos foi
a celebração durante a AGE do envio de missionárias para o Continente africano.
Outra
preocupação levantada durante a Assembleia tem a ver com a necessidade de levar
a cabo na missão um compromisso junto às ONGs que estão a serviço da vida, um
engajamento com Movimentos sociais que promovem a defesa dos pobres e
fragilizados, e uma parceria com organismos (municipais; regionais) que trabalham
pela promoção dos direitos humanos e sociais do povo.
2.4. A
intercongregacionalidade e interculturalidade
Importante
ressaltar como os religiosos(as) estão, cada vez mais, sensíveis e abertos a
uma experiência comunitária e missionária a partir da intercongregacionalidade.
Maneira de “somar forças” e construir um projeto comunitário e missionário
enriquecedor e “refontalizador” da vida consagrada. Esse fortalecimento mútuo
só tem a contribuir com os compromissos assumidos. Isso é constatável em experiências
que estão acontecendo. Não se pode “parar” nas dificuldades que são normais!,
sobretudo quando se trata de personalidades e visões diferentes de
encaminhamentos dos trabalhos na missão. Numa “mesa temática” se comentou que o
trabalho de intercongregacionalidade na América Latina já foi bem vivenciado em
décadas passadas na área da formação, da educação e no compromisso de inserção
por algumas congregações. Também uma preocupação que se levantou foi a respeito
da razão e do sentido da união de algumas províncias, sobretudo na Europa e na
América Latina. Preocupação que não recebeu um aprofundamento.
Outro elemento
importante que foi refletido na AGE tem a ver com a interculturalidade. A
riqueza da VRC se dá pela interação com as mais variadas culturas dentro e fora dela. Também é impossível querer evangelizar, no atual
contexto mundializado, sem considerar a diversidade cultural que atravessa a
sociedade e os povos. A VRC com o rosto de todos os povos seguirá dando
continuidade ao “paulatino câmbio étnico-cultural e transnacional aberto com
‘descobertas coloniais’.” (Edênio Valle) Em algumas experiências ainda é
possível encontrar “padrões europeus” na forma de vivenciar e organizar a
experiência religiosa.
Constata-se
que a experiência de latinoamericanização, africanização e asiastização da VRC
é fato irreversível. Ao mesmo tempo acelera uma deseuropeização. Essa realidade
se testemunhou em vários momentos da AGE, tanto por meio da liturgia, dos
pronunciamentos, como dos testemunhos missionários dentre outros.
Inculturados e
inseridos na realidade pluricultural, pluriétnica e pluricontinental, os
religiosos(as) poderão ser fermentação da novidade de Deus. Consciência que
está clara, cada vez mais, para a VRC do século XXI.
2.5. Parceria
com leigos(as)
Na AGE houve
destaque para a importância de estreitar parceria com os leigos(as), seja na
missão, na espiritualidade seja vivência de pertencimento. Diante de um mundo
globalizado e complexo é imprescindível contar com presença dos leigos(as) em nossas
Obras, projetos etc. O mundo tem por base um sistema tecnológico, social,
jurídico, econômico e financeiro que exige profissionais qualificados para
ajudarem a VRC. Caso contrário, é inviável dar conta das demandas que surgem em
todo momento.
Querer uma
transformação na VRC, na Igreja e no Mundo exige compreender a importância do
pertencimento do leigo(a) junto à nossa vida e missão. Não entender isso é perder a oportunidade de
renovação e, o que é mais sério, correr o risco de chegar à falência no que diz
respeito a projetos e atividades institucionais e missionárias importantes para
o povo e a própria sociedade. Ou seja, os leigos(as), como sujeitos eclesiais e
sociais, não podem ficar à margem se queremos uma verdadeira transformação da
VRC e da Sociedade. E mais, os leigos(as) ajudariam a VRC cultivar e revelar características mais
laicais; vale dizer, presença mais ativa nas realidades social e política. Esse
clamor também foi expresso na AGE por meio de alguns “grupos de trabalho”.
3.
O “Novo” está na semente?
Procurando
captar e interpretar, à luz da fé, da esperança e das práticas apresentadas na
AGE, a respeito do que de “novo” pôde ser visto – em resposta ao lema: “Eis que
estou fazendo uma coisa nova!” (Is 43,19) –, surgiram-me as perguntas: O “novo”
já brotou ou continua em processo de germinação? O “novo” não pode ser
confundido com uma “maquiagem” e/ou reestruturação do “sempre existente”? Ou o
“novo” se encontra nos temas ou nas experiências entendidas como Kairós?
Na AGE ficou
claro que um setor ou seguimento da VRC não aposta mais nas
velhas e arcaicas estruturas, tampouco
na profecia a partir das grandes Obras lucrativas. Outro percepção encontrada
entre os religiosos(as) é de que de um modelo de consagração ancorado num
“porto seguro”, numa vida aburguesada e acovardada diante das necessidades,
lutas e sonho do povo não pode emergir “coisa nova” ou vida em processo de
transformação.
Enfim,
voltando à questão de fundo: Onde está o Novo ou Que “coisa Nova”? Procurando
encontrar uma primeira resposta – sem querer ser pretensioso - poder-se-ia encontrá-la no itens que seguem:
3.1.
Necessidade de Reforma Estrutural
Um tema
levantado, mas não aprofundado, diz respeito à necessidade de uma reforma estrutural da VRC. Diante de uma
“época de mudança” e “mudança de época” devido à crise das mediações (política,
ética, Representação), da falta de alternativa para a “Esquerda” e o
esgotamento do Modelo de Desenvolvimento[1];
ou, como expunha outro assessor[2],
sobre os diferentes modelos de Sociedade e a possível repercussão na VRC, o desafio da vida em
Redes complexas, a sacralidade do indivíduo etc, tudo indica que é importante e
imprescindível uma análise Institucional profunda, uma mudança na dinâmica
organizacional (por exemplo, quanto ao Poder), uma abertura aos Sinais dos
Tempos na VRC. Caso contrário, um grande setor dos religiosos(as) seguirão ou
chegarão à fossilização.
Nessa ordem de
preocupação, o Cardeal Dom João Braz de Aviz – Prefeito da CIVCSVA,
apresentou-se com bastante liberdade e coragem. Comentou que a VRC tem que
passar necessariamente por Reformas, apesar de não ter aprofundado sobre que
Reformas seriam necessárias.
3.2. Revisão
da identidade antropológica heterocentrada e sexista
Quando a VRC é
desafiada diante da questão de Gênero, de um “novo rosto” ou “jeito de viver” a
consagração pelas NGs, por uma formação em que formando não é sujeito
protagonista, por uma mentalidade sexista, homofóbica etc., nasce o imperativo
de se trabalhar a perspectiva antropológica.
Somente numa
visão antropológica humanocêntrica é possível ter diálogo, interação e
reciprocidade com as novas demandas. Enquanto a VRC estiver estacionada no
heterocentrismo e no sexismo, o que contribui, por exemplo, para uma
desvalorização da mulher e de algumas identidades afetivossexuais, fica
impossível entender os novos tempos. Nesse sentido, a Palavra é iluminadora:
“Ninguém põe vinho novo em vasilhas de couro velhas, senão o vinho vai romper
as vasilhas, e tanto o vinho como as vasilhas ser perderão. Ao contrário, vinho
novo em vasilhas novas!” (Mc 2,22).
3.3.
Importância do trabalho colaborativo e holístico
Uma
preocupação refletida tem a ver com um trabalho colaborativo. Nessa orientação
afirmou um dos assessores[3]:
“Se somos poucos e fracos: ou morreremos, cada um/a no seu canto, ou
empreenderemos ações colaborativas”. O que se espera da VRC são práticas desde
uma ação conjunta entre as Congregações, ou das Congregações com Organismos que
ajudam numa ação eficaz de compromisso com a vida, preferencialmente com a vida
dos mais fragilizados e excluídos da sociedade.
Visando a essa
colaboração, além da intercongregacionalidade, deve-se contar com as Redes ou
Parcerias. Um exemplo é a REDAM – Rede Eclesial Panamazônica, a qual funciona
na modalidade das Redes internacionais. Redes que trabalham com os Direitos
Humanos, com a Igreja de fronteiras, com alternativas de desenvolvimento etc.
Ademais, constata-se uma visão holística da realidade, o que é fundamental para
compreender a complexidade de cada área da vida e do trabalho.
3.4. Sintonia
com as questões Continentais e Mundiais
Um fato
percebido durante a AGE é a preocupação com as grandes questões mundiais. A VRC
está sintonizada com as tragédias que ocorrem na atual Civilização; vale dizer,
é visível que um setor dos religiosos(as) está conscientizado da tragédia que
vive os refugiados e os imigrantes. Como também no que diz respeito às guerras,
o tráfico humano, o neo-colonialismo, a falta de utopia para a humanidade e a
miséria em alguns países.
Diante dessa
realidade algumas Congregações têm se desdobrado para um trabalho missionário
“in loco”.
3.5. Esperança
na Vida Religiosa com a perspectiva do papa Francisco
Diante da
“primavera eclesial” testemunhada pelo papa Francisco, a VRC está chamada a uma
volta à transparência do Evangelho, um retorno ao Seguimento de Jesus. Esse
chamado tem recebido uma recepção por parte da VRC – é o que se constatou na
AGE!
O consagrado(a)
se sente com mais ânimo e esperança diante da vida e da missão. As provocações
do papa por uma VRC: Hospital de campanha, Cheiro de Evangelho, Pobre e para os
Pobres, Dialógica, sem nostalgia do passado, cheirando à ovelha, que saí à rua,
alegre e jovem... abrem os horizontes para uma reestruturação e aprofundamento
da profecia no cotidiano da consagração.
Enfim, à VRC fica a questão: o místico, o profético e o “novo” não
passam pela experiência samaritana, nazarena?
É muito
sintomático, esperançoso e, ao mesmo tempo, alentador ter experienciado na AGE
a comunhão com a linha eclesial do papa Francisco.
4.
Temas que não tiveram (ou muito pouca) ressonância na
AGE
Neste último
item parece ser importante recordar temas que a VRC deverá enfrentar com
profundidade. Isso para entender a complexidade, os grandes desafios
contemporâneos, a Razão que tem convergido para uma crise civilizacional e onde
podemos cultivar a vida de consagração numa missão pelas “coisas novas”. Como
também caminhos factíveis de serem assumidos numa trilha de alternatividade e
utopia.
4.1.
A ordem sistêmica da Financeirização
Compreender o
empobrecimento das pessoas, a destruição da natureza, a concentração de renda
etc. só é possível partindo da compreensão do impacto da financeirização na
atual civilização mundial. A financeirização é a inserção da lógica econômica
em diferentes setores da organização social. E mais: “A financeirização
caracteriza a política do capitalismo neoliberal tardio, permitindo-lhe extrair
valor dos bens comuns: invadir a previdência social e o seguro-saúde,
privatizar a educação e infraestrutura, monetizar a medicina e o seguro médico,
hipotecar maciçamente a dívida dos estudantes, confiscar fundos dos
depositantes, tirar recursos das empresas estatais. Estas todas são as formas
de enclausuramento... que permitem uma pequena mas poderosa minoria saquear o
bem comum, da mesma forma como essa elite global saqueou a riqueza pessoal da
maioria via bolha imobiliária, com enorme queda nas posses de todas as famílias,
exceto de muito, muito poucos. O capitalismo das finanças impõe-se ao capitalismo
industrial, mas o que se impõe ao capitalismo financeiro? Esta é a primeira
crise planetária de tal magnitude global e está ligada intimamente a uma crise
ecológica, social e de desemprego mais ampla. Tanto a escala quanto a
velocidade de seu desenvolvimento inexorável pode indicar que nada consegue
salvar o sistema, e as coisas devem continuar assim até o colapso final
inevitável.”[4]
Diante desse
quadro da financeirização do mundo, com o triunfo do Capitalismo neoliberal,
brotam muitos desafios para a VRC. Por quê? Se a evangelização deve anunciar a
boa-nova de Deus em vista de uma humanização dos seres humanos e de toda a
realidade, a mesma enfrentará uma transformação antropológica, social, cultural
e político-econômica no tecido societário. Para uma nova realidade devem se ter as ferramentas adequadas, e não apenas o
voluntarismo e a boa-vontade! Como se diz: “A financeirização é uma nova
modalidade de subjetividade que cria normas e valores que estruturam a nossa
vida diária”(M. Peters).
4.2.
Um Outro Mundo é necessário e possível!
A VRC pode e
deve afirmar, com testemunho em palavras e práticas concretas, que outro mundo
é necessário e possível. Não assumir esse testemunho pode significar uma
absolutização do sistema vigente. E sistemas sociais que são tratados ou se
afirmam como absolutos podem ser idolatrados e provocam a morte de milhões de
seres humanos e da natureza. Tudo isso em nome do crescimento econômico que
garantirá a realização do desejo consumista ilimitado, preferencialmente para a
elite.
O atual
sistema econômico é insustentável e injusto. “É insustentável porque o
crescimento econômico do atual modelo de globalização necessita que o padrão de
consumo dos países ricos seja introduzido cada vez mais por todo o mundo,
homogeneizando o estilo de vida e desejos de consumo. É essa homogeneização do
padrão de consumo e das relações sociais que permite a produção em escala
global e o mercado consumidor global, sem os quais as grandes corporações
transnacionais perderiam a sua vantagem competitiva. Essa expansão se legitima
sob o mito do progresso econômico que diz que não há limites para o crescimento
econômico, que esse crescimento pode e deve ser imitado por todo o mundo e que
há uma harmonia entre o progresso técnico, o crescimento econômico e o
desenvolvimento da humanidade.”[5]
Mas se esquece
de que a natureza é finita e já está dando seu “grito” que revela as
consequências da destruição, e para manter o padrão de consumo da elite dos
países ricos só é possível com a exploração sobre os já empobrecidos e
diminuindo gastos nas áreas sociais.
Diante dessa
situação a VRC deverá seguir carregando o sonho e a luta por um Mundo que seja
social, econômica e ambientalmente sustentável. E mais. Nesse compromisso com a
construção de um outro Mundo o tema da promoção das necessidades básicas dos
pobres tem que ocupar lugar central. Profeticamente assinalou I. Ellacuría a
tarefa que se deveria assumir: “Envolver o trabalhar por uma civilização da pobreza, não pobreza no
sentido de privação do necessário e fundamental, devida à ação histórica de
grupos ou classes sociais e de nações ou conjuntos de nações, mas um estado
universal de coisas em que fosse garantida a satisfação das necessidades
fundamentais, a liberdade das opções pessoais e um âmbito de criatividade
pessoal e comunitária que permitissem o surgimento de novas formas de vida e
cultura, novas relações com a natureza, com os demais homens, consigo mesmo e
com Deus.”[6]
4.3.
Processo de transformação desde as grandes mudanças
Uma grande
tarefa-missão para a VRC consiste também em trabalhar seu processo de
transformação considerando as grandes mudanças que vem ocorrendo no mundo
contemporâneo. Sem esse o exercício de adequação responsável e profundo, no que
tange as mudanças na sociedade, os religiosos(as) estarão favorecendo uma
situação de “esquizofrenia existencial”, uma mumificação institucional e uma
miopia diante das novas exigências para a vida.
Para colocar
em “marcha” ousada e atualizada frente às novas questões há que conhecer o que
está se dando em termos de mudanças nos
níveis: cultural, científico, tecnológico, espacial, mercantilista etc.[7] Ou
seja, a não compreensão do que ocorre no mundo da cultura com os princípios da
autonomia, do individualismo, da liberdade, da busca do bem-estar; do poder que
as novas tecnologias e o mundo científico têm sobre o ser humano, inclusive a
exigência de estar a todo tempo acompanhando a revolução na área tecnológica,
sobretudo no que diz respeito ao mundo virtual, o estar conectado com o mundo,
a facilidade de resolver muitas coisas on-line;
a presença da mercantilização de tudo o que existe; vale dizer, tudo é transformado
em “mercadoria”, não é possível acompanhar a sociedade contemporânea. E o que é
mais sério, não terá capacidade de entender a demanda do ser humano de hoje.
Nesse sentido,
pode-se fazer a seguinte pergunta: o “renascimento” de um amplo setor da VRC
não passa também por uma atualização diante das Grandes Mudanças? Não há dúvida
de que um setor da VRC já está bem entrosado com esse “novo mundo”, é só
enxergar o que ocorre em algumas Obras em áreas como: educação, saúde e
comunicação.
4.4.
Caminhos de libertação num tempo de Crise
Nas estradas
da atual Civilização mundial a VRC tem que ser
e fazer caminho em direção às “coisas
novas”. O Cristianismo é caminho, por
isso é impossível vivenciar a experiência cristã sem ser caminho para a
novidade de Deus no mundo de hoje. Também há que ter clareza de que o “caminhar
é introduzido na ultimidade. Tem uma dimensão teologal com conteúdos práxicos
em favor do próximo: justiça, amor e ternura. Na história não é coisa fácil,
não é um prazeroso passear, menos ainda um perambular. É antes ‘abrir caminho’
no meio de obstáculos. Por isso não se deve caminhar altaneiramente, mas
humildemente, com Deus e na história real.”[8]
Um caminho de
libertação fundamental e urgente é o da “guinada descolonial” ou projeto de
descolonização da VRC. Algumas Congregações ainda estão à sombra de um modelo
de vida importado. O que tem dificultado a inculturação, a inserção e a entrada
num processo de compromisso de libertação dos pobres e excluídos. Em outras palavras, os consagrados(as) estão
convidados pela Palavras a vivenciar “saber ‘pensar a realidade, a realidade
mundial. Não a partir da perspectiva do centro, do poder cultural, racional,
falocrático, político, econômico ou militar, mas a partir de além da própria
fronteira do mundo atual central, a
partir da periferia.”[9]
Não apenas pensar, mas sobretudo assumir um prática conseqüente de
transformação desde a ótica dos sempre excluídos e colonizados. O que implica
uma ação ad intra e ad extra. Por exemplo, no que concerne o
ad intra há muito ainda por fazer no
que toca a formação, o poder institucional, o diálogo com a cultura dos povos
“sempre colonizados” etc. Também não deveria refletir com mais profundidade e
responsabilidade sobre a importância de experiências a partir de “comunidades
mistas”, ecumênicas e de gênero? O Espírito não poderá soprar, para além da
Tradição e do Direito Canônico, novos modelos de VRC?
Outro caminho
de libertação é trabalhar por uma governança mundial solidária, ética e
responsável. Diante dos neofundamentalismos, das organizações violentas e
terroristas, da irresponsabilidade diante de povos sem futuro, das migrações em
nome de uma luta por vida digna e justa, da vitimação de milhões de crianças
pela fome, do tráfico internacional de seres humanos, do gasto com armas de
destruição em massa, do descontrole do poder da energia nuclear etc, é urgente
e imprescindível trabalhar por um modelo de governança mundial. Para isso, há
que promover: uma nova consciência e prática pela construção de mecanismos
decisórios políticos planetários a favor da vida; o princípio da
intersolidariedade terrenal; a visão de uma sociedade-mundo de novo tipo, cuja
concepção se alicerçaria na constituição da Terra-Pátria, a qual preservaria a
diversidade de culturas e pátrias; uma mentalidade em prol do preservar a
diversidade, num espírito de tolerância e pluralismo, resistindo a um tipo de
relativismo que conduz à desumanização. Caso contrário, seguiremos numa
“policrise” que levará ao caos planetário. A partir do apresentado vem a
questão: vislumbramos uma estratégia para enfrentar a policrise? É possível
reverter o processo fundando desde já as bases de uma sociedade/civilização
alternativa?
4.5.
A Utopia do Reino de Deus
No trabalho e
no sonho por Um Outro Mundo possível e necessário, onde a vida humana seja
humanizada e a natureza preservada, é fundamental cultivar a utopia. Elas são
necessárias para que a VRC tenha um horizonte de sentido que a permite criticar
o mundo atual e a possibilita avançar em projetos alternativos para sociedade. Como
se afirma: “A sociedade na qual não podem nascer e fomentar-se as utopias é uma
sociedade na qual a esperança histórica se vê reduzida à limitada aspiração que
consiste em manter o que se tem. Em poucas palavras, uma sociedade sem utopia é uma sociedade sem esperança. E,
portanto, é uma sociedade na qual alguns, os privilegiados, concentram suas
aspirações em não perder o que têm, enquanto que a grande maioria, os
marginalizados e excluídos, não passam do desesperado desejo de sobrevivência,
expressão mínima do instinto de conservação.”[10]
Qual a utopia
que deve mobilizar a VRC? Alguém, por exemplo, pode afirmar: “Uma sociedade
onde caibam todos” ou “Uma sociedade do Bem-viver”. Contudo, não se pode deixar
de dizer que todas essas utopias deveriam ser compreendidas a partir do horizonte do Reino de Deus. É claro que a
VRC deve desejar uma sociedade sem exploração, injustiças e exclusão, “mas
devemos também saber que essa imagem do Reino no interior da história é só um
horizonte que dá sentido para as nossas vidas e lutas, mas não é e nunca poderá
ser um projeto histórico de sociedade a ser construído.”[11]
Não se pode iludir com uma visão de o Reino de Deus fosse uma construção humana
que se realizaria plenamente no interior da história e nela não existiria mais
relações de opressão e injustiça. Há que ter consciência que a conquista de um
mundo sem contradições e dominações está além das possibilidades humanas, por
isso é chamado de Reino de Deus. O importante é que a Utopia do Reino motive e
revigore a VRC para seguir na trilha de contribuir na construção de uma
sociedade com menos desigualdade e injustiça.
Conclusão
aberta. Para seguir conquistando e sonhando com uma VRC “semper reformanda
est”, que seja fermento e luz para o Povo de Deus, parece ser imprescindível
partir da concepção de que ela sempre será uma “Flor sem defesa” – “’Flor, que
transforma o sangue em adubo! És mais forte que a mão que te corta! Mais
duradoura que a idéia que te define. Mais nítida que a pintura que retrata o
teu rosto! Já cresce no mundo o medo de ti, Flor sem defesa!’”[12] Também a VRC só será profecia e “pão partido”
e amoroso para os “queridos do Pai” se ela fizer parte da “Família Abraâmica”.
Experiência que exige viver a prece:
“Que
os nossos olhos se abram e comecemos pela urgência de superar o próprio
egoísmo, sair de nós mesmos e nos dedicarmos de vez, à custa de quaisquer
sacrifícios, à luta não-violenta por um mundo mais justo e mais humano!
“Que
não deixemos para amanhã: comecemos, hoje, agora, sem arrebatamentos
passageiros; com decisão, firmeza e pertinácia!
“Que
olhemos em volta para descobrir irmãos e irmãs, marcados pela mesma vocação de
dizer adeus ao comodismo e de marcar encontro com todos os que têm fome de
verdade e juraram dedicar a vida tentando abrir, através da justiça e do amor,
caminhos para a paz!
“Que
não percamos tempo em discutir lideranças; o importante para nós seja unir-nos
e caminhar, firmes, para o nosso objetivo, lembrados de que o tempo corre
contra nós!
(...)
“Que
sejamos capazes do máximo de firmeza, sem cair no ódio, e do máximo de
compreensão, sem cair na convivência com o mal.”[13]
Enfim, a VRC deverá ser experiência
do rosto de Deus – “O rosto de Deus é a clarabóia da vida humana, a raiz da
libertação e da ressurreição. É a eterna Boa Nova para o povo oprimido. Sem
este rosto tudo escurece. Não há lâmpada nem vela que possam substituí-lo. Quem
não o conhece talvez não sinta a sua falta. Mas quem o encontrou já não sabe
mais viver sem ele. O encontro com Ele revoluciona a vida, faz descobrir o que
está errado em nós e ao redor de nós, e anima para a luta, a fim de recolocar
tudo no seu devido lugar, como Deus o quer.”[14]
Como servos fiéis e prudentes, vigiar
sempre! (Mt 24,45-51)
[1] Durante
a AGE o assessor Inácio Neutzling expôs a respeito dessa nova realidade. A
conferência fez parte do Tema: “Uma leitura de Cenários Sociais e Religiosos
Contemporâneos”
[2]
Luiz Carlos Susin. O assessor trabalhou o aspecto religioso/teológico do tema:
“Uma leitura de Cenários Sociais e Religiosos Contemporâneos”.
[3]
Cf. a exposição de Afonso Murad no Temário: “Vida Religiosa Consagrada em
Processo de Transformação: esperanças e caminhos em tempos de Francisco”
[4]
Afirmação de Michael Peters em entrevista concedida à Unisinos em 22/9/2015.
[5] J.
MO SUNG, Economia e espiritualidade: por um outro mundo mais justo e
sustentável, in: Concilium 308 –
2004/5: 741-742
[6]
Jon SOBRINO, Cinquenta anos para o futuro cristão e humano, in Concilium 364 – 2016/1: 77
[7]
Cf. Luiz Augusto de Mattos, Do porto seguro a um tempo de provação, da
incerteza à esperança pascal: a Vida Religiosa Consagrada e os seus atuais
desafios, in Luiz C. SUSIN, Vida religiosa
consagrada em processo de transformação, Ed. CRB e Paulinas, 2015, p. 18-56
[8] Jon
SOBRINO, op. cit., p. 81
[9]
Enrique DUSSEL, Descolonização epistemológica da teologia, in Concilium 350 – 2013/2: 187
[10]
José M. CASTILHO, A utopia sequestrada, in Concilium
308 – 2004/5:660-661
[11]
J. MO SUNG, Deserto, mercado &
religião, Fonte editorial, 2010, p. 172
[12]
Carlos MESTERS, Flor sem defesa. Uma
explicação da Bíblia a partir do povo, Ed. Vozes, 1983, p. 9
[13]
D. HÉLDER CÂMARA, O deserto é fértil,
Ed. Civilização Brasileira, 1985, p. 109-110
[14]
Carlos MESTERS, A bíblia na nova
evangelização. “Eis que faço novas todas as coisas”, Cadernos da CRB, 1990,
p. 19